"Contos de fada são inteiramente verdadeiros. Não por nos dizer que dragões existem, mas por dizer que eles podem ser vencidos."
Sempre me disseram que conhecimento é poder. E agora eu posso entender o porquê.
Sempre me disseram, também, que a ignorância é uma bênção. E graças a tudo o que me ocorreu, eu também posso entender o porquê.
Já não estava mais no hospital, nem no prédio. O lugar me era completamente diferente agora. Um vento seco cortava o meu rosto, e uma paisagem desértica abria-se diante dos meus olhos. Decadente é o melhor termo, na verdade. Ruínas de prédios, carcaças de carros... o lugar cheirava a ferrugem, a decadência. A medo.
Comecei a andar, embora não fizesse idéia de para onde eu estava indo. O lugar parecia deserto, mas algo dentro de mim dizia que não. E que na verdade eu não gostaria de encontrar quem realmente habitava. Mas aquela não era uma escolha minha.
Crack.
Olhei para trás, a tempo de perceber uma movimentação atrás de uma carcaça metálica. Havia alguém além de mim, sem dúvida. E por mais que eu quisesse saber quem era, ou onde estava, tinha certeza de que aquele ser não era o mais indicado para eu pedir informações. Apressei o passo, e não demorou muito para que eu me visse correndo no meio de tudo aquilo.
Arrisquei virar o rosto, somente para ter mais vontade de correr. Criaturas retorcidas, com dentes afiados e amarelados me perseguiam. Cada vez que se movimentavam seus ossos pareciam estalar, como se desacostumados à atividade. Não falavam – mas emitiam barulhos, que mais pareciam ter saído de uma garganta à qual faltavam cordas vocais. Os sons eram vários – minhas botas no cascalho, metal retorcido... Com esforço pude distinguir
- Viivaa... ela está.... vivaa...
Diferente de mim, aquelas coisas não pareciam se cansar. Sentia meu peito arquejar, a respiração faltava, e eu não sabia por quanto tempo mais aguentaria. Os barulhos se aproximavam, assim como o cheiro de enxofre que exalavam. Minhas pernas doíam, e o vento forte fazia minha cabeça rodar. Se o inferno existe, definitivamente deve se parecer com aquele lugar.
Mal percebi quando comecei a pisar em algo aquoso. Água, ali? Não havia lugar diferente para onde ir, então continuei. As criaturas pararam, mas ficaram cercando a margem. Às vezes tentavam avançar, mas não tocavam a água. Havia, aparentemente, alguma vantagem em estar viva naquele lugar.
Percebi então que era um rio, cuja foz se estendia longamente a perder de vista. Uma névoa densa limitava a visão, de modo que só conseguia ver, de fato, até umas dezenas de metros de distância. E uma sombra, mais escura que a névoa, se aproximava lentamente de mim. Por instinto recuei alguns passos, mas o cheiro de enxofre atrás de mim lembrou-me de que estava encurralada.
Conforme a sombra se aproximava, percebi uma silhueta de alguém em um barco. Carregava uma longa vara, com a qual guiava o barco simples, de madeira, sem adornos. Trajava um longo manto com capuz, e a única coisa que ficava à mostra era seus dedos pálidos, e seus cabelos enegrecidos, de aparência úmida.
- Uma moeda.
Caronte, o barqueiro do rio Aqueronte. Lembrei-me da ilustração de Gustave Doré, que havia feito para a Divina Comédia, de Dante. Segundo a lenda, ele levava a alma dos mortos pelo afluente do Estígia, dirigindo-os para o Inferno. Os antigos tinham o costume de cremar os corpos com uma moeda embaixo da língua, para que eles pudessem fazer a passagem pelo rio. O Detalhe era: eu não estava morta. Nem tampouco tinha um óbulo comigo. Ou será que, de fato, eu havia morrido? Olhei para trás e as criaturas continuavam ali, à espreita, apenas esperando um deslize.
- Mas... eu não tenho nada aqui.
- Sua alma.
Um vento frio roubou-me o fôlego. Minha alma? Eu não tinha muitas opções, no entanto. Voltei o rosto para a margem, e as criaturas continuavam ali. O cheiro de enxofre chegava até mim, suas vozes disformes e seu hálito exageradamente quente.
- A troco de quê? – falei, enquanto recuava lentamente na direção da margem. Se eu estava morta de fato, não importava muito para quem a minha alma fosse.
- Conhecimento. Sobre você. Sobre o que você é. E o que você pode fazer.
Sem pensar duas vezes, subi no barco. E a embarcação seguia, sem remos, pelo rio.
Parte 1: aqui.
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