As hard as diamonds.Aquela tinha tudo para ser uma noite normal. Sabe, tudo mesmo. A lua estava no céu, naquele estágio que ninguém consegue dizer se está cheia ou não, mas que todos sabem que ela não está; as estrelas ali também, mas aparecendo só de vez em quando - o que me leva a perguntar por que as estrelas se escondem da gente, mas acho que isso não vem ao caso. Não tem nada a ver com a história.
O fato é que aquela deveria ter sido uma noite normal. Sim, normabilíssima. Dessas que você chega em casa do trabalho, tira os sapatos, fica andando de meia pela casa e ouvindo sua esposa reclamar do lamentável gosto musical da vizinha que não pára de ouvir: "É na sola da bota, é na palma da mão... bote um sorriso na cara e mande embora a solidão...", e dizer que não agüenta mais isso, e que quer se mudar dali. E então, você, ignorando de uma maneira carinhosa, "sim, querida, eu concordo. Mas não podemos nos mudar agora, você sabe", se senta na frente da tv e assiste o jornal, falando da conjuntura política do país, que nunca muda. Uma noite bem normal, não concorda?
Bem, eu estava voltando no meu carro - um carro modesto, mas bem conservado, que funciona bem a maior parte do tempo. Isso porque eu sou um cara cuidadoso, que prefiro cuidar sempre do carro a deixá-lo por aí, sabe? Justamente para ele não quebrar nos piores momentos. Como aconteceu naquela noite.
O pior é que eu resolvera fazer um trajeto diferente. Estava justamente numa rua que eu achava que já havia passado por algum momento da minha curta vida, mas algo dentro de mim dizia que eu estava perdido. Eu devia confiar mais nessas coisas de intuição masculina.
A rua era escura, daquelas que tem um monte de postes de iluminação, mas cujas lâmpadas só funcionam ocasionalmente, seguindo provavelmente uma complicada relação entre a posição astral e a tabela de marés, resultando que elas raramente funcionam. E claro, não iriam funcionar quando eu estivesse ali.
Liguei os faróis, peguei o triângulo de sinalização, conforme todas as leis do trânsito. E só pra previnir, liguei também aquelas luzes que sempre ficam piscando, e que eu nunca aprendi o nome. Peguei o celular e disquei o número que estava no adesivo colado no porta-luvas, que era do reboque. Estariam chegando em vinte minutos.
Me tranqüilizei, e fiquei dentro do carro, com a porta aberta, e um pé no asfalto ainda quente àquela hora da noite. Engraçado, aquela rua não era movimentada. Por que diabos o asfalto estaria quente num horário onde até fazia um ventinho frio?, me peguei comentando com os meus botões.
Não, os meus botões não me responderam. Mas o susto que eu tomei foi equivalente.
- Bem, por quais diabos eu não sei, mas esse lugar sempre foi esquisito. Asmodeus, muito prazer.
Ainda olhei para os botões da minha camisa, pensando que eles poderiam ter me respondido, e então eu realmente estaria louco. Mas então notei que um destinto senhor estava parado do lado de fora do meu carro, estendendo uma mão com unhas esquisitas, e usando roupas que pareciam ter saído de um guarda-roupa do século XIV.
Me apresentei, ele retirou um cigarro do bolso e me ofereceu num gesto silencioso. Engraçado, nunca fumei, mas naquele momento senti uma vontade enorme de experimentar. Peguei o cigarro entre os dedos - daquele jeito que eu sempre vi nos filmes e achava tão estiloso - e ele prontamente acendeu um daqueles esqueiros prateados, que devem custar uma nota.
- O que houve com o carro?
- Hum, não sei. Apenas *cof cof cof* quebrou sozinho. Liguei pro reboque, acho *cof cof* que estarão chegando *cof cof* em breve.
- Nunca fumou antes?
- Bem, não realmente. Mas é... agradável.
O sujeito sorriu de um jeito quase imperceptível. E então eu consegui notar que o lugar inteiro estava mudando. O céu - se é que eu poderia chamá-lo assim - começou a mudar de tom, chegando a um vermelho que parecia ter saído de um daqueles filmes de terror de baixo orçamento. As tintas das paredes caíram de repente, e tudo parecia cheirar a tétano.
- Bem parecido com um filme que eu vi recentemente...
- É. Eles fizeram uma pesquisa de campo.
- Você está me dizendo que... Ah, bem, você só pode estar brincando, não é?
- Claro - uma pausa, que quase me tranqüilizou. - que não. Vamos, ligue o carro. Vamos fazer um
tour pelo meu lar. Mas conhecido como Inferno.
Algo me dizia que se eu não ligasse logo o carro, ia acabar carbonizado como um pássaro que acabava de cair na estrada, com um grunhido alto e agudo. Esperei que entrasse no carro e girei a chave. Funcionou perfeitamente.
E lá estava eu, andando pelas ruas de um asfalto perfeito, apesar de um tanto quentes demais. No toca-fitas que já não funcionava tinha uns meses, tocava algo que parecia pop dos anos 80. Eu sempre achei que aquilo era coisa do demônio mesmo.
- Hum, eu achava que os buracos no asfalto eram coisa... de vocês. - falei, tentando quebrar o silêncio.
- Não, não somos nós que fazemos chover. Além do quê, é muito mais tentador uma pista em linha reta com um asfalto perfeito, não? Sim, sim. Os rachas foram inventados por nós.
- Hum, faz sentido... Mas... por que me trouxe aqui?
- Porque você foi o azarado de estar no meu perímetro quando eu estava passando por perto.
- Ah... Que sorte. - pausa. - Hum, mas eu vou voltar?
- Ainda não sei. Apenas continue dirigindo.
Eu podia saltar do carro. Mas com certeza não saberia fugir daquele lugar. Minha esposa devia estar muito brava comigo, pois completávamos... quantos anos de casamento mesmo? Ou era o aniversário dela? Bem, não importa. Ela realmente ficaria muito brava comigo. E minha esposa brava com certeza era pior que qualquer outro demônio.
- Bem, sabe, é que eu tenho compromissos... sabe, minha esposa. Bem, é uma data especial, e nós íamos sair para jantar... e...
- Ah, claro. Sexo. Bem, essa invenção não é nossa, mas certamente foi uma bela idéia
deles. Eu entendo. Bem, você pode voltar aqui outro dia. E provavelmente será para todo o sempre. Então, terá muito tempo para conhecer tudo aqui.
E então o cenário mudou com a mesma rapidez. Estava na mesma rua escura e esquisita, e minha carona já não estava no carro. Mas as notas de "Jones, Jones, come doctor Jones, doctor Jones, doctor Jones wake up now..." ainda soavam na minha cabeça.
O carro funcionou e eu voltei pra casa. E não precisei pagar o reboque.
- Querido, que cheiro esquisito é esse na sua camisa? Parece enxofre...
- Isso é uma velharia, logo, uma republicação, embora nunca tenha aparecido aqui no Membrana. A questão é que Allana queria estar com humor e cabeça para escrever um texto digno de comemorar as 100 postagens do blog, mas não está com o mínimo humor/inspiração para isso. E como esse é um texto relativamente bom, e relativamente engraçado, então merece relativamente estar nesta ocasião tão especial para o blog.
- Allana queria saber fazer aquelas notas bonitinhas que Fernanda faz, mas não é uma blogueira profissional e a dita cuja não se encontra disponível para ensinar-lhe.
- Allana acha muito estranho falar de si mesma em terceira pessoa.
- 100 posts na Membrana que de Seletiva não tem nada! A equipe Membrana está preparando algumas surpresas, mas aparentemente só preparando mesmo. Sem previsão de quando vão ficar prontas.